GPS e a Dallas Cup: a importância da visão sistêmica na interpretação dos dados e na conduta da comi
- Renato Buscariolli
- 3 de mai. de 2015
- 8 min de leitura

Em março deste ano, iniciei mais uma trajetória profissional nas categoras de base do Coritiba Foot Ball Club, juntamente comigo outros profissionais vieram agregar o quadro de profissionais que já possuía grande tradição no cenário futebolístico. Um das pessoas que conheci no Coxa foi o preparador físico e hoje amigo Renato Buscariolli, além de toda a relação e troca de conhecimento, uma pessoa formidável que em todo momento tem novas idéias e também sempre receptivo a receber conheimento. Renato, Bacharel e Licenciado em Treinamento Desportivo pela Faculdade de Educação Física da Unicamp (2006). Especialista em Bioquímica, Fisiologia e Treinamento Desportivo pela Unicamp (360h - 2008). Mestre em Biologia Funcional e Molecular na área de Overtraining (Unicamp, 2011). Doutorando na área de Biodinâmica do Esporte com Projeto voltado para modelos de Periodização no Futebol (Unicamp, 2012). Aluno de Iniciação Científica (Bolsista PIBIC CNPq de 2004 a 2006 e Bolsista Fapesp em 2007). Monitor da disciplina Bioquímica Básica (BB-110) de 2003 a 2011 e da disciplina Atletismo (MH-612, 2006) ambas ministradas para alunos de graduação em Educação Física da Unicamp. Desenvolve trabalhos como preparador físico no futebol. Escritor-colaborador do portal especializado em Futebol - Universidade do Futebol - (www.universidadedofutebol.com.br). Ministra cursos e palestras em cursos de Especialização voltados para o futebol. Atualmente preparador físico da categoria Sub-19 do Coritiba Foot Ball Clube.
GPS e a Dallas Cup: a importância da visão sistêmica na interpretação dos dados e na conduta da comissão técnica – Parte 1
Por Renato Buscariolli
Olá caros amigos!
Nosso último encontro foi há cerca de um ano e o tema abordado na ocasião foi a relação entre “acadêmicos” e “ex-atletas” em um manuscrito construído em conjunto com o treinador Narciso dos Santos. Hoje venho tratar de um assunto menos polêmico, mas não menos importante: a utilização do GPS como ferramenta de controle de jogos e a importância da visão sistêmica na interpretação dos dados. A escolha do tema surgiu através de discussões diárias nos clubes que trabalhei nos últimos anos e para enriquecer a temática e torná-la menos subjetiva, mostrarei de forma contextualizada alguns dados obtidos.
GPS é uma sigla originada da língua inglesa para Global Positioning System (Sistema de Posicionamento Global), que em suma fornece a um aparelho receptor móvel a sua posição através de satélites. Atualmente a utilização do GPS como ferramenta de controle de treinos e jogos está muito difundida no futebol e o baixo custo envolvido na aquisição deste equipamento é um dos fatores que favoreceu este fenômeno. Hoje, com investimento em torno de R$ 150,00 é possível adquirir um relógio de pulso que armazene os dados cinemáticos (distância percorrida, faixas de velocidade) em uma sessão de treino qualquer. Como relógios de pulso não podem ser utilizados em jogos oficiais, alguns aparelhos estão sendo comercializados há algum tempo para suprir essa demanda, variando o preço de acordo com a funcionalidade e precisão (GPS Sports, Catapult, Qstarz, etc).
Uma das principais dificuldades dos preparadores físicos e fisiologistas da atualidade é controlar o volume de treino em atividades em contexto de jogo (jogos reduzidos), visto que nestas sessões, diferentemente de um treinamento intervalado de corrida em torno do campo, não é possível quantificar o número de voltas ou sprints realizados. O advento do GPS na rotina diária veio suprir essa demanda, otimizando o controle da carga de treino, já que permite o acesso à distância percorrida e ao número de ações em alta intensidade. Paralelamente, o controle cinemático dos jogos também se tornou uma realidade, permitindo à comissão técnica ajustes finos na programação de acordo com as informações obtidas com a própria equipe. O grande “problema” é que as variáveis cinemáticas obtidas em uma partida oficial são oriundas de um sistema complexo e a interpretação destes dados exige do profissional envolvido uma alta capacidade de leitura deste ambiente já que há uma série de fatores que interferem direta e indiretamente no número final. Para melhor ilustrar a situação trago ao leitor a seguinte pergunta: “Suponha que você é treinador e tenha três equipes para assumir o comando: Equipe A – apresenta a mesma distância média e o mesmo número de ações intensas nos dois tempos do jogo, com valores compatíveis com os adversários; Equipe B – apresenta maior distância média e maior número de ações intensas na 2ª etapa, sempre com valores superiores aos adversários; Equipe C – não apresenta um padrão cinemático definido, adequando-se às circunstâncias dos jogos. Qual das equipes você escolheria? Os dados a seguir (e os do próximo manuscrito) devem ajudar o leitor nessa escolha.
Recentemente, participei de uma competição internacional (Dallas Cup) como Assistente II (Preparador Físico) pelo Coritiba Foot Ball Club e uma das preocupações da comissão técnica foi a recuperação dos atletas entre uma partida e outra, visto que o tempo de descanso era muito curto, inviabilizando a recuperação total para o jogo seguinte (jogamos 5 jogos oficiais de 45’ x 45’ em um intervalo de 7 dias!). Nesse sentido, com o intuito de monitorarmos o rendimento dos jogadores, lançamos mão da utilização de GPS nas partidas para balizarmos nossas decisões ao longo da competição. Logo no primeiro jogo, um fato curioso ocorreu ao analisarmos os dados obtidos: os 5 atletas de linha que atuaram durante toda a partida (eram permitidas 6 substituições), percorreram distâncias significativamente maiores no 2º tempo (média 1ºT: 4450m x 2ºT: 4800m) e mantiveram o número de ações em alta intensidade* (média 1ºT: 51 x 2ºT: 49), algo não tão comum no futebol em virtude da intensificação do processo de fadiga na 2ª etapa. Ou seja, nossa equipe apresentou um comportamento semelhante à “Equipe B” citada acima.
Em um primeiro momento este dado “frio” nos dá a impressão de que a equipe está muito bem fisicamente já que se superou na 2ª etapa do jogo. Aliás, essa foi a primeira impressão dos próprios atletas ao terem acesso aos dados. Todavia, essa não foi a interpretação realizada pela comissão técnica e o fato da equipe ter corrido mais no 2º tempo foi tido como algo negativo. Isso porque, na primeira etapa a equipe dominou o jogo, manteve a posse de bola, realizou 10 finalizações contra apenas uma do adversário e foi para o intervalo vencendo por 3x0. Já no 2º tempo, a postura da equipe mudou (principalmente a partir dos 10’ quando fizemos as duas primeiras substituições), deixou de controlar o jogo e ter a posse de bola, realizando apenas 5 finalizações (contra 10 do adversário), perdendo esse tempo por 1x0. Ou seja, muito provavelmente a equipe passou a correr mais pois se desorganizou e deixou de fazer alguns princípios básicos, sendo penalizada com o sofrimento de um gol. Traduzindo na “linguagem da bola”: correu errado.
Com o intuito de avaliarmos o desempenho da equipe como um todo, ao término da competição compilamos todos os dados obtidos e pudemos notar alguns fatos interessantes os quais compartilho com o leitor. A primeira figura apresentada é o controle cinemático individual dos atletas. O objetivo deste gráfico foi caracterizarmos nossa equipe (e cada um dos atletas) quanto à distância média percorrida e ao número de ações em alta intensidade na competição. Os dados representam a média dos cinco jogos realizados e relativizamos pelo tempo jogado por cada atleta, permitindo a comparação entre todos. Além disso, vale ressaltar que todos os atletas explicitados iniciaram jogando todos os jogos.

Podemos observar na Figura 1 que cinco atletas (dois zagueiros, lateral direito, meia e o atacante de referência – ATA 1) tiveram uma distância média percorrida em torno de 90m/min enquanto os dois volantes e o lateral esquerdo em torno de 95m/min e os dois atacantes extremos (ATA 2 e ATA 3) 100m/min. No que diz respeito às ações de alta intensidade, três atletas apresentaram valores superiores a 0,8 ações/min (ATA 2, ATA 3, VOL 2), seis atletas ficaram entre 0,5 e 0,7 ações/min (ZAG 1, ZAG 2, LD, LE, VOL 1 e ATA 1) e apenas um único atleta ficou abaixo de 0,5 ações/min (meia).
Tradicionalmente, a literatura científica mostra que os laterais e meio campistas são os atletas que percorrem as maiores distâncias nos jogos se comparados a zagueiros e atacantes. Em nossa equipe, podemos notar que os dois atletas que apresentaram as maiores distâncias percorridas e o maior número de ações em alta intensidade foram os dois extremos (atacantes), que exerceram uma função tática muito importante dentro da plataforma na qual atuamos (1-4-2-3-1) culminando nestes resultados. Além disso, observamos que o lateral direito e o meia apresentaram distâncias compatíveis com as dos zagueiros sendo que o número de ações de alta intensidade do meia foi extremamente baixo. Ou seja, de acordo com estes dados, podemos dizer que fisicamente falando, ambos deixaram a desejar, principalmente o meia, correto? Cuidado. A análise deve ser mais profunda (ou seria mais sistêmica?!) do que isso.
No caso do lateral direito, uma das principais justificativas é o fato deste atleta não apresentar características ofensivas tão marcantes, atuando de forma mais posicionada na linha defensiva, deixando de realizar ultrapassagens, algo que de fato pode melhorar no seu modo de jogar (uma das poucas vezes que este jogador invadiu a área adversária com ultrapassagem marcou um gol). Já o meia apresenta momentos de baixa mobilidade no jogo e diminui sua participação efetiva na fase de construção da equipe, uma vez que aceita a marcação adversária com certa passividade, deixando de oferecer linhas de passe, algo que também pode melhorar, uma vez que possui muita qualidade técnica e boa leitura de jogo, sendo imprescindível para a equipe. Vejamos agora outro controle realizado na competição, o de gols feitos e assistências. Neste caso os valores apresentados estão restritos aos atletas que iniciaram os jogos.

Interessante, não? Vejam que se considerarmos apenas os dados cinemáticos, nosso meia poderia ser substituído da equipe ou mesmo ser orientado a realizar treinos físicos complementares com o argumento de que estaria mal fisicamente ou sem vontade de jogar. Todavia, a análise contextualizada (complexa, sistêmica) do seu desempenho, mostra que o atleta teve um rendimento bastante satisfatório e que pode sim ser otimizado com uma maior participação na fase de construção da equipe. O problema para quem enxerga o futebol de maneira fragmentada é que nem sempre o atleta que menos corre da equipe é o líder de assistências e o vice artilheiro como ocorreu nesta competição, e os dados cinemáticos podem enviesar a decisão da comissão técnica. Vale ressaltar ainda que a forma mais confiável e fidedigna de se avaliar a capacidade física de um atleta é em um teste físico padronizado e reprodutível e não no jogo em si onde o número de variáveis interferentes é extremamente alto. No caso do meia em questão, o mesmo encontra-se acima da média do grupo na capacidade física resistência, mostrando que esta não é a justificativa para sua baixa mobilidade.
Reforço que caso não tivéssemos realizado a coleta dos dados cinemáticos e das avaliações físicas, essa discussão (e análise sistêmica complexa!) não seria possível e por isso, contrário a alguns profissionais da área, defendo as avaliações físicas como diagnóstico do elenco e também o controle cinemático de treinos e jogos. Para terminar a primeira parte desta discussão (pretendo apresentar mais elementos em um próximo manuscrito para que o leitor possa responder a questão acima) deixo para reflexão sobre o tema uma fala do treinador Mourinho do Chelsea em entrevista dada recentemente ao jornal inglês “The Telegraph”:
“Nós estamos sempre olhando para as atuações individuais, as estatísticas individuais, o jogador que corre mais. Porque você correu 11 km em um jogo e eu, nove, você fez um trabalho melhor do que o meu? Talvez não! Talvez os meus nove sejam mais importantes”.
Forte abraço e até a próxima, Renato Buscariolli
*são consideradas ações em alta intensidade, sprints e corridas que ultrapassaram os 18km/h.
** A construção deste manuscrito contou com o auxílio de Túlio Flores (incentivo inicial), Eduardo Zarpelon (construção dos gráficos) e Eduardo Barros (discussões sobre o tema)
*** A obtenção dos dados cinemáticos foi possível graças utilização do software Sys GPS (http://www.fesistemas.com.br/)
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